Dec 10, 2011

A trágica e poética história de amor de Wando Oliveira da Silva

Hello, cute friends! <3

Hoje temos a participação especial do meu amigo Pedro Grizotti diretamente das terras distantes de Natal. A participação dele é uma dica minha de algo que ele faz e que gosta de fazer (suponho). Meu letroso favorito dessa vez foge do seu estilo sombrio e nos presenteia com a história de Wando, nome que pertencerá não só a esse mas também a outros protagonistas da sequência de contos "Wandos do meu Brasil" que o Grizotti pretende fazer contando histórias comuns de gente comum.

Eu já li e adorei. Indico que leiam, eu sei que parece grande, mas, tirando a média pelos que li, é um dos menores e vale a pena. Acompanhem agora a trágica e poética história de amor de Wando Oliveira da Silva.

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Toda a noite lá estava ele, o incansável Wando Oliveira da Silva, motorista de uma determinada linha de ônibus que faz o translado entre a capital Natal e a mais-que-interiorana Parnamirim – não há muitas, você logo deve imaginar de qual se trata – no místico e distante Rio Grande do Norte. Não que fosse o serviço dos sonhos, mas Wando estava satisfeito: conseguia pagar as contas e ainda sobrava para tomar uma aos finais de semana, isso sem falar das belas universitárias que podia ver e, quando se sentia um pouco mais confiante, cantar. Não que ele fosse um mestre da sedução barata – aliás, muito longe disso, já que nosso galanteador condutor nem mesmo tinha um Twitter para acompanhar as listas de bons xavecos que circulam pela selvagem e surpreendente internet – mas ele tentava o seu melhor, o que, obviamente, não era suficiente. Ainda assim, como já diria aquela pegajosa propaganda governamental, Wando era um bom brasileiro, e por isso não desistia nunca – ou melhor, simplesmente não tinha senso do ridículo. E todos nós sabemos que esse tipo de pessoa sempre se diverte mais, já que nem estão ligando mesmo.

Pois bem, a vida de Wando Oliveira da Silva não teria nada demais a se contar se ficasse nos rotineiros trajetos de seu sempre atrasado ônibus e suas bebedeiras nos dias de folga, mas algo inusitado aconteceu a nosso intrépido herói. Isso é, não foi uma coisa assim repentina, como ser abduzido e fundar uma religião new age ou ser salvo por um garoto dizendo ter visto que você iria morrer de forma trágica e absurda – só para depois bater as botas de um jeito mais disparatado ainda. Começou sem que Wando nem mesmo notasse. Distraído com as joviais universitárias, ele demorou a reparar na lindíssima e muito maquiada Luciene, uma moça que trabalhava até tarde numa lanchonete do labiríntico Natal Shopping, o que deixava a sua pele com um atrativo brilho exótico. Seus diferenciais não paravam por ai: ela lia escritores europeus nas horas vagas, o que incluía a trepidante viagem até sua casa, que ficava na última parada do último ônibus para a deserta Parnamirim, que por acaso era dirigido por Wando. São mistérios do destino esses, que misteriosamente adoram acontecer em histórias de amor, como é o caso. Nunca entendi muito bem isso, mas achei bacana e, como digno escritor amador, resolvi experimentar e ver no que vai dar.

Seja como for, Wando foi aos poucos notando como aquela curiosa passageira de tez lustrosa, sempre a última a descer, parecia bela e interessante, mesmo que não estivesse correndo atrás de um diploma de nível superior – o que, se você cursa alguma licenciatura, não faz a mínima diferença na sua miserável situação financeira. Havia um quê verdadeiramente chamativo em Luciene, algo que fez Wando desgrudar os olhos do suntuoso e sempre presente decote e reparar melhor nela. Talvez fosse o languidamente cinematográfico modo como ela se movia, o obviamente enganoso, porém ainda assim tentador ar de pureza ou aquele jeitão meio cult – para quem não lia nada além da seção de esportes do jornal, qualquer obra literária era um filme do Almodóvar. Isso tudo não é exagero, por mais que pareça. Tamanha era a formosura de Luciene que ela nem sequer precisava usar photoshop em seus álbuns do Orkut. Bem, você entendeu a idéia.

Encantado, Wando ansiava pela noite na qual poderia finalmente se aproximar de sua musa árcade. Demorou um pouco para que isso acontecesse, tempo suficiente para que ele estudasse melhor seu alvo e colhesse algumas informações. O sonho de Luciene era estudar e
formar-se professora de literatura – o que indica certo grau de loucura e temeridade, anote bem isso, será importante no final – mas ela não tinha tempo, recursos nem capacidades cognitivas suficientes para tal. Seu tolo sonho era então alimentado por poesias lidas em livros comprados nos tétricos sebos da Cidade Alta. Não que ela entendesse bem todos aqueles versos, mas isso não a impedia de suspirar, desejosa. Ela acreditava que nunca havia experimentado o verdadeiro amor, seja lá como ele for.

Então, num belo fim de dia de muito calor – não existem poéticas noites chuvosas em Natal, infelizmente – Wando finalmente teve sua muito aguardada oportunidade. Era algum feriado local, o que deixou o ônibus praticamente vazio, exceto pelos nossos dois protagonistas, que tinham que trabalhar de qualquer forma. O platonicamente apaixonado motorista puxou um papo qualquer, utilizando toda sua parca habilidade social para manter sua vítima interessada. Ele estava tendo um resultado razoável, mas logo notou que não conseguiria evoluir se continuasse naquele ritmo. Então, próximo ao ponto final, Wando sacou sua carta na manga: uma coletânea de sonetos de amor do grande mestre ultramarino Luís de Camões, edição de bolso da L&M Pocket, daquelas bem baratinhas. Luciene ficou instantaneamente impressionada: nunca havia conhecido outra pessoa que gostasse de poesia – veja bem, ela não frequentava os melhores círculos sociais. Começava ai uma linda história de amor, digna de um filme da Sessão da Tarde.

O tempo foi passando e os dois ficavam cada vez mais próximos. Luciene sentava naquela cadeira solitária que ficava logo atrás da roleta, e por isso era constantemente tomada por trocador, embora só quisesse conversar com o refinado motorista do ônibus. As coisas foram ficando cada vez mais quentes, até que – bem, você conhece essa parte melosa, vamos saltá-la. Se não sabe como é, assistia a uma novela de Globo e logo vai entender.

Entretanto, nem tudo foram flores no romance a diesel de nossos nobres protagonistas. Enquanto os dois botavam os pingos nos is e não deixavam verso sem rima, as reticências cresciam na cabeça do marido de Luciene. Sim, ela era casada, embora reclamasse sempre de seu esposo gordo, folgado e torcedor do América de Natal. Como ela própria dizia, sua aventura a fazia sentir-se viva outra vez. De qualquer forma, isso aqui não é Madame Bovary, então traição é traição.

Enquanto isso, Wando já planejava a romântica fuga com sua amada. Como os dois não tinham grana suficiente para uma temporada de loucuras e casamentos suspeitos em Las Vegas, decidiram que iriam para Mossoró mesmo, onde Wando tinha uma tia muito simpática que com certeza os ajudaria. Os papos literários também ganharam novos patamares. Nosso evoluído motorista já havia até mesmo tentado ler Fernando Pessoa, mas aquele monte de personalidades o havia deixado muito confuso e o feito desistir. Ainda assim, ele continuou a procurar algo que fizesse transparecer seu intelecto e gosto superiores. Terminou por conhecer Bocage. Bem, era o melhor que ele poderia fazer, o que, novamente, não era suficiente.

Mas, bem, se essa fosse realmente uma história de amor proibido que termina bem, não faria jus ao título. Certa noite, mais uma vez de muito calor, um sujeito estranho pediu parada ao ônibus de Wando. Era o corno marido de Luciene, que havia descoberto tudo através de um amigo dedo-duro que trabalhava no claustrofóbico Via Direta e também utilizava aquela sempre atrasada linha para retornar ao lar. O homem subiu e passou seu cartão para liberar a catraca, mas ao invés de seguir adiante e procurar um assento disponível – que ele não encontraria – ficou ali parado, observando, aos bufos de fúria, o motorista que nada desconfiava. Quando não mais suportou sua ira interior, vendo que havia sido passado para trás por um indivíduo tão feio e inútil quanto ele próprio, sacou seu revólver e disparou até esvaziar o tambor enquanto berrava sentenças que não podem ser postas aqui. Bem, você sabe como são crimes passionais. Eles não têm esse nome a toa. Atirar no motorista de um ônibus em movimento não foi particularmente uma idéia brilhante.

Wando, tendo realizado toda a situação pouco antes de morrer, ainda teve tempo de praguejar contra seu assassino. A maldição não demorou muito a se concretizar. Na verdade, quase nada. O veículo desgovernado bateu vigorosamente contra um poste, e o marido traído, que não estava a se segurar em nada, foi projetado para fora e morreu no impacto. Uma verdadeira vingança poética, como vocês podem notar. Ou seria uma ironia poética? De qualquer forma, foi assim que tudo aconteceu.

Num último golpe de glamour, Wando e sua história estamparam as primeiras páginas de todos os jornais da região, com a manchete: “A trágica história de amor de Wando Oliveira da Silva”. Um tanto grande para uma chamada jornalística, mas os editores responsáveis também tinham um gosto estilístico pomposo. O resultado foi um recorde de vendas dos periódicos, além da aparição em noticiários de todos os canais da tv aberta. A mãe de Wando até mesmo comprou umas roupas novas para dar entrevistas, mais orgulhosa de seu filho do que nunca. O velório foi um verdadeiro espetáculo, com direito até a uma nova tentativa de vingança, mas isso é uma outra história.

Quanto a Luciene, ela continua lendo seus livros, novamente solitária, precisando muito de um homem que a console. Eu tenho o número dela, se você quiser.