Jul 5, 2012

A épica jornada de Wando Percival Junior – Parte 2

Olá, my sweet babies!

Depois de tanto tempo (totalmente por minha culpa! Estou com o conto aqui há alguns dias) finalmente publico para vocês a Parte 2 d'A épica jornada de Wando Percival Junior. É tempo de continuarmos trilhando junto ao nosso protagonista predileto os mais tortuosos caminhos rumo a sua amada Gisele.

Os convido a dar boas risadas junto comigo com mais esse conto do Pedro Grizotti.

Ah! E não comece a ler a segunda parte sem ler a primeira, galerës! É só ir em A épica jornada de Wando Percival Junior – Parte 1!

Um grande beijo e até a terceira e última parte dessa jornada!

 

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O relógio marcava três da manhã, um horário bastante sugestivo se você já assistiu O Exorcismo de Emily Rose. Enquanto Sam sonhava com festas universitárias, a única coisa que ecoava na mente de Wandinho era a frase “Sorry Mario, but the princess is in another castle”. Os dois dormiam pesadamente, cansados depois de um dia cheio e de terem que enfrentar uma fila gigantesca para o único banheiro da pousada, que, graças ao nosso amigo Murphy, parecia ter enchido de hóspedes de uma hora para outra. Pelo preço que estavam pagando, parecia um privilégio até mesmo haver água encanada no local.

E então, subitamente, nossos protagonistas foram arrancados de seu sono – no melhor estilo Inception – por fortes batidas na porta. Sam, o primeiro a conseguir levantar, atendeu ao chamado ainda bastante sonolento. Mal havia girado a maçaneta quando Dadolargo adentrou o quarto como um raio. Terminou de acordar Wandinho aos tapas, e sua expressão não escondia que algo terrível estava a acontecer. Quando já estavam todos razoavelmente despertos, Dadolargo disse, num tom de voz sombrio, que os inimigos haviam encontrado-os. Precisavam sair dali o mais rápido possível, e assim se pôs a recolher tudo de útil que via pela frente. Ainda bastante atordoados, Wandinho e Sam começaram a arrumar as malas tão depressa quanto seus raciocínios entorpecidos conseguiam – o que não impediu que saíssem ainda vestidos com seus velhos pijamas dos Looney Tunes.

Haviam descido apenas o primeiro lance de escadas e nossos protagonistas já conseguiam a ouvir os gritos – ou melhor, urros – vindos do lado de fora. Dadolargo alertou-lhes que aqueles eram os temidos Cavaleiros Negros – metaleiros barra-pesada, inimigos de todo nerd, todo amor, toda cor que não fosse preto, todos os fãs de emocore, todas as patricinhas, todo... – na verdade, eles odiavam tudo que não fosse eles mesmos. Eram a encarnação física do bullying, da destruição e do mal. Ouviam qualquer banda de metal – mas tr00 metal, nada dessa modinha de new metal – que tocasse um estilo cujo nome envolvesse as palavras death, black, doom, grind, evil, 666, destruction, hell, dark, ou heavy, em qualquer ordem e combinação que você puder imaginar. E essa nem era a pior parte: o líder da turba, conhecido como Braddock, o Terrível, era o ex-namorado de Gisele – ok, não vamos falar do passado negro de ninguém aqui, ou a coisa vai ficar feia – e havia descoberto sobre Wandinho e seu propósito, estando naquele momento disposto a arrancar a cabeça do engraçadinho que resolveu se engraçar com “a sua garota” – sim, ele era do tipo bastante teimoso e persistente.

Dadolargo contou, apressado, que os metaleiros eram o antigo nemesis dos nerds de Brasília – na verdade, de mais da metade da cidade – e que agora eles tinham um motivo especial para acabar com Wandinho, o que os motivava ainda mais. Quando nossos aventureiros chegaram ao, notaram que a porta de saída estava prestes a ceder, sendo atingida violentamente por coturnos, correntes e spikes. Terríveis berros ofensivos em tons guturais podiam ser ouvidos por todo salão – piores até do que os gritos da mãe de Wandinho. No canto do recinto, o dono da pousada se encolhia em puro terror, com uma cruz nas mãos trêmulas caso a situação piorasse. Parecia ser o fim da linha para aquela aventura toda.

Num estrondo, a porta de entrada se rompeu. As criaturas que adentraram o Sapo Saltitante naquele momento pareciam ter acabado de sair de algum filme trash dos anos oitenta – ou de um clipe de alguma banda de black metal, o que dá no mesmo. Braddock, um sujeito que demoraria mais de meia hora para passar pela porta giratória de um banco, tomou a frente e encarou Wandinho, uma expressão demoníaca estampada no rosto. Um vento frio correu pelo salão, trazendo a frialdade da própria morte. Se por perto houvesse corvos, eles estariam grasnando. Wando estava paralisado, sentia como se sua alma estivesse sendo esmagada. Sam, naquele momento, estava apenas remotamente consciente. Dadolargo, entretanto, mantinha-se inabalável – certamente ele possuía um bônus de Vontade muito mais alto que o de seus protegidos. Ágil e sempre preparado, sacou de sua mochila um vinil do Dimmu Borgir, uma relíquia de tempos perdidos, e atirou-a em direção à turba dos metaleiros, que imediatamente começaram a se digladiar pela posse daquele tesouro. Antes mesmo de ser questionado sobre onde havia conseguido aquilo, Dadolargo aproveitou a distração para escapar o mais rápido que pôde com Wandinho e Sam, correndo para a porta dos fundos – engraçado como sempre há uma quando mais se precisa.

E foi assim que, por um triz, nossos protagonistas conseguiram fugir pela escura madrugada brasiliense, feito verdadeiros ladrões dos contos árabes, e pensando que, na pior das hipóteses, aquilo tudo ao menos daria uma boa história para ser contada na internet.

 

Espremidos na boléia do caminhão e derretendo em suor, Wandinho e Sam melancolicamente tentavam se consolar, imaginando que aquela situação ao menos era melhor do que estarem se apertando nas gavetas de algum necrotério em Brasília. No meio da noite, aquilo era o melhor que poderiam conseguir, parte do genial plano de escapatória de Dadolargo, sobrinho do visualmente – e olfativamente – desagradável motorista, que naquele momento cruzava as fronteiras da Bahia. No final das contas, a carona tinha servido também para economizarem a grana das passagens, embora novamente tivessem que viajar ao som de Zezé di Camargo e Luciano.

Mesmo não sendo dos mais agradáveis, o percurso até os confins baianos não foi de todo mal. Wandinho e Sam conheceram a história de Dadolargo, um rapaz de tão bom coração que só não havia se tornado um super-heroi por falta de um corpo mais sarado para usar colan, cujo sonho – depois de jogar muito RPG, é claro – era se tornar um ator de verdade – eu sei que muitos de vocês, caros leitores, já desejaram a mesma coisa, mas caso não tenham algo minimamente próximo da sorte e habilidade do personagem em questão, melhor desistirem enquanto ainda lhes resta alguma dignidade. Fora isso, ele ainda tocava guitarra numa banda de power metal e jogava basquete nas horas vagas. Com um currículo tão impressionante, Wando e Sam imaginaram que as mulheres deveriam fazer fila na porta da casa de Dadolargo – o que não estava muito distante da realidade.

Todo aquele papo fez o tempo parecer passar mais rápido e animou os espíritos, embora incomodasse um pouco a Wandinho a falta de coisas legais que pudesse contar sobre sua vida – você prestou atenção ao início do texto, não é? A Sam nada mais perturbava, concentrado como estava em seus pensamentos e expectativas de sua recém-iniciada fase pervertida – um tanto tardiamente, é claro, mas estamos falando de um jovem nerd aqui – absolutamente comum a todos os adolescentes – e que, no caminho certo, o teria levado à excelente carreira de mulherengo boêmio filhinho de papai.

Depois de duas paradas para descarregar mercadorias – nas quais Wandinho e Sam trabalharam tão duro que desejaram ter pagado as passagens de ônibus – e uma para almoço, nossos cansados protagonistas finalmente conseguiram pegar no sono, embora numa posição tão bizarra e comprometedora – por causa da falta de espaço, obviamente – que seriam zuados pelo resto de suas vidas se mais alguém tivesse visto aquela cena. E foi assim que, usando a mesma estratégia de quando se tem fome bem no meio da noite, Wando, Samuel e Dadolargo dormiram pesadamente, esperando que dessa forma o desconforto daquela viagem passasse mais rápido.

A discussão estava acalorada, mas tudo que Wandinho se limitou a fazer foi pôr mais um pedaço de frango na boca e aguardar calado. Ainda não havia decidido se o tio de Dadolargo era esquecido, idiota, maldoso ou simplesmente um bom fingidor. A carona havia sido uma mão na roda, mesmo com todo o aperto, mas acordar numa fazenda em algum lugar perdido em meio ao oeste baiano não foi muito agradável. Naquela casa moravam também a tia, três primos, o avô e mais alguns parentes de Dadolargo, que, segundo o pensamento distorcido de seu tio, estava muito a fim de visitar sua família do interior. Pelo menos a comida era boa e teriam onde passar a noite, pensou Wandinho – e a expressão de Sam, as mãos cobertas de óleo reluzente segurando uma perna de galinha, parecia dizer a mesma coisa.

Não havia muito mais que pudesse ser feito. Se fossem esperar por uma carona de volta, Wandinho e os outros teriam de passar todo o final de semana naquele fim de mundo – e ainda era quarta-feira. Decidiram descansar e juntar forças para o outro dia, no qual tomariam o rumo de Serpentina, embora ainda não soubessem como – só sabiam que tinham que terminar aquilo tudo rápido, ou perderiam a estréia da nova temporada de The Walking Dead no domingo, o que era absolutamente impensável.

Enquanto Sam zapeava pelos tediosos canais da parabólica – sempre presente nos lares interioranos – Wandinho vagava longe, pensando em sua musa nerd. Ensaiava mentalmente o que diria a ela quando se encontrassem, mas sua cena hipotética sempre terminava com ele dizendo alguma bobagem, como notar os quilos extras de sua amada ou puxar um papo sobre toalhas de banho e suas utilidades no espaço sideral. Decidiu que se aconselharia com Dadolargo e tentaria aprender algo sobre falar com mulheres cara a cara – porque atrás de uma tela e com o Google ao lado, todos podem ser o Don Juanencarnado. Wandinho acabaria por demorar a pegar no sono naquela noite, se torturando com o fato de as coisas não serem tão simples quanto mostram na Sessão da Tarde.

 

Ardendo sob o sol do meio-dia baiano, Wandinho e Sam estavam prestes a sair no tapa, apartados pela última gota de paciência de Dadolargo. Tudo parecia bem até aquele casal de sotaque engraçado ter abandonado nossos três bravos viajantes naquele posto de gasolina no meio do nada, partindo com tudo que eles tinham de valor. Haviam aceitado a carona por insistência de Sam, que estava hipnotizado por Andressa, uma mulher de movimentos lânguidos e sensuais. Coincidentemente, o namorado de Andressa também se chamava Wando, um sujeito suspeito com um bigode pitoresco, do qual deviam ter desconfiado desde o princípio. Entretanto, já era tarde, e tudo que Wando, Sam e Dadolargo podiam fazer era chorar pelo leite derramado, o que sempre parece ajudar em muito a resolver qualquer que seja o problema em questão.

Depois de esperarem por horas e quase não verem veículo algum passando por aquela rodovia perdida, nossos protagonistas decidiram por seguir viagem a pé, uma vez que não tinha muito escolha – afinal, mesmo se conseguissem alguma carona, as chances de serem levados por um molestador ou psicopata parecia enorme naquele pedaço do mundo esquecido pelos deuses. Juntaram o pouco dinheiro que ainda lhes restava, compraram provisões e caíram na estrada, mesmo com poucas esperanças de chegarem ao destino pretendido – uma vez que estavam inclinados a matar uns aos outros na primeira oportunidade.

Nos infindáveis dias que se seguiram – foram apenas dois, mas isso tiraria todo o tom épico da história – Wando e os demais caminharam até suas peles ficarem completamente bronzeadas, comeram o pão que o diabo amassou – isso é, se o diabo for uma cozinheira baiana de beira-de-estrada que cobra bem baratinho – dormiram em postos de gasolina imundos e por muitas vezes tiveram de usar pontos de Força de Vontade para não se enforcarem – é, numa situação assim os humores não ficam nada bem. Toda noite, ao deitar-se ao relento para dormir, Wandinho olhava para as estrelas e buscava o rosto de sua amada, mas lembrava que esse tipo de alucinação é apenas reservado aos jogos de videogame e filmes. Já Sam contorcia-se de desespero e ansiedade, pois nunca havia ficado tanto tempo sem internet em toda sua vida.

Quando a manhã de sábado ainda começava, nossos três resistentes aventureiros finalmente avistaram algum sinal de civilização: uma cidadezinha com casas de aparência antiga. Animados, pensando que estavam diante da sonhada Serpentina, buscaram forças em seus interiores – feito Seiya de Pegasus – e correram a toda velocidade, tolamente imaginando que toda aquela jornada estava perto do fim.

 

Wando ainda estava um tanto desnorteado devido à rapidez com que tudo tinha acontecido. Haviam entrado na cidadezinha e vagado a esmo por uma infindável quantidade de minutos, nenhum sinal de uma alma viva. Nenhum carro pelas ruas, nenhum transeunte a caminhar apressado pelas calçadas, nenhuma barraquinha vendendo lanches cheios de salmonela e – o pior de tudo – nenhuma lan house aberta. Sam estava tão convencido de que estavam numa cidade fantasma que tentava empurrar as casas para ver se elas desabariam como o cenário bidimensional que deveriam ser – e podia jurar que iriam encontrar um saloon de porta balançante a qualquer instante. Dadolargo seguia atento, desconfiado de toda aquela quietude – vocês sabem o que diz o clichê a respeito de calmarias assim, não é?

E a partir de então, tudo ocorreu muito rápido. Uma senhora com aquela aparência acolhedora de quem faz ótimos bolos viu Wandinho e seus amigos se arrastando pelas ruas desertas, abatidos pelo sol e pela fome, e imediatamente os acolheu em sua casa com cheiro de domingo a tarde. A doce velhinha, que usava um xale de crochê rosado sobre os ombros curvados pelos anos, logo se pôs a cuidar de nossos três acabados protagonistas com um carinho maternal. Antes que eles pudessem terminar de lamber os dedos, já eram servidos com mais cookies, pedaços de tortas, pudins, pãezinhos de queijo, biscoitos de polvilho e outras iguarias mais. Parecia tudo muito surreal, uma fantasia nascida depois de Kafka ter passado a noite toda se empanturrando de doces. Entretanto, uma barriga cheia é capaz de espantar qualquer preocupação, e assim Wandinho, Sam e Dadolargo rapidamente ignoraram o fato de a cidade estar mais vazia que o Google+ no seu ano de lançamento.

Sem que notasse, as horas escorreram pelos dedos de Wandinho feito chocolate derretido – quase literalmente falando. Em meio à comilança, nossos gulosos protagonistas mal notaram a casa se enchendo de outras velhinhas, todas muito simpáticas e agradáveis, que os enchiam de mimos e doces. Cada nova senhora que chegava trazia consigo uma nova iguaria: de beijinho a empada, de refrigerante a limonada, Wando e seus amigos sentiam como se fossem explodir a qualquer momento. Nos intervalos entre as refeições, eles ouviam histórias antigas com a cara enfiada em porta-retratos cheirando a mofo, contadas pelas velhinhas com entusiasmo e nostalgia. Conheceram inúmeros netinhos, todos “muito lindos e inteligentes” – é, eu sei que sua avó também falava isso de você quando pequeno, caro leitor, e também sei que ela se desencantou quando você cresceu e virou um adolescente chato. Os álbuns de fotografias pareciam não acabar nunca, e as senhoras faziam fila para terem a oportunidade de também contarem suas histórias.

E isso se repetiu tarde e noite adentro, vencendo a resistência de Wandinho, Samuel e Dadolargo. E foi então, após acordarem em camas bem forradas depois de terem pegado no sono no sofá, numa bela manhã de domingo – dia sagrado das velhinhas – que notaram, para a profunda tristeza de todos, que a maldição da terra das vovós sem netos estava completa.

 

Por algum erro no cartório – que pareciam ocorrer numa frequência alarmante antigamente – a senhora que havia acolhido Wando e seus amigos chama-se Circe – um nome bastante adequado, embora ela não fizesse ideia de onde seu pai havia tirado aquilo. Dona Circe havia sido mãe quatro vezes, e cada um de seus filhos havia lhe dado dois netos, o que a alegrava muito, uma vez que sua casa sempre vivia cheia de crianças. Entretanto, tudo mudou com a chegada daquela maldita internet. Os jovens da cidade, através da péssima – e única – conexão disponível na região, notaram o quanto o mundo lá fora era vasto e cheio de oportunidades, e então, pouco a pouco, deixaram todos aquela cidadezinha perdida em meio ao oeste baiano, rumando para as grandes metrópoles, como Brasília, Goiânia e Salvador. Aos poucos, até mesmo os adultos acompanharam o êxodo dos jovens, traindo a sagrada convivência familiar em prol de dinheiro sujo e abundante. O resultado disso tudo foi que restaram apenas os velhinhos na cidade, agora quase deserta, carentes de bochechas para serem apertadas, ouvidos curiosos e estômagos vazios.

Não havia forma de Wando e seus amigos escaparem. Com seus quitutes mágicos, Dona Circe os havia transformado em leitões, incapazes até mesmo de correrem até a porta da sala de estar. Os dias se passavam – lá se foi a estréia da temporada nova de The Walking Dead – e eles não conseguiam – talvez nem mesmo quisessem – descobrir uma forma de fugir e seguir viagem. Tudo parecia perdido – mas, espere ai, você não achou que a história acabava por aqui, né? Olha quantas páginas ainda faltam! Fora isso, é nessas horas que o heroi sempre tem alguma ideia genial.

E dessa vez não seria diferente. Dadolargo havia concebido seu plano enquanto ouvia Dona Circe contar sobre como ele se parecia com o neto mais velho dela, que adorava os bolos de chocolate da vovó – já havia dois no forno, aliás. Para pôr sua ideia em prática, entretanto, ele teve de se concentrar e recorrer a todos os seus dotes teatrais. Na calada da noite, compartilhou seu estratagema com Wandinho e Sam, que a princípio relutaram, mas por fim aceitaram – com lágrimas nos olhos – que aquele era o único jeito de escaparem. Os três mal conseguiram pregar os olhos – provavelmente culpa de alguma indigestão – pelo resto da madrugada, sentindo-se como se estivessem se preparando para um enterro.

A partir do nascer do sol, tudo correu como planejado. Furtivamente, Wando e Sam conseguiram esconder todo o café-da-manhã em suas mochilas – já prontas para a fuga – enquanto Dadolargo distraia Dona Circe. E então, no ápice da tensão – isso é, no fim da refeição – o momento fatídico chegou. Dadolargo olhou bem nos olhos de Circe, apontou-lhe o prato vazio e disse a frase fatal. Aproveitando-se do total deslumbramento – num nível quase hipnótico – da velhinha feiticeira, Wandinho e Sam deram no pé, um nó na garganta por estarem deixando seu companheiro para trás.

Horas e horas depois, as últimas palavras de Dadolargo ainda ecoavam na mente de nossos bravos e finalmente livres viajantes: “Vovó, ‘tava tão bom, posso repetir?”. Wandinho jurou para si mesmo que aquele sacrifício jamais seria esquecido. Estava mais decidido do que nunca a encontrar Gisele e selar seu amor eterno.

 

Assim que puseram os pés em Serpentina, Wandinho e Sam notaram que alguma coisa estava muito errada naquele lugar. Não como na cidade de Circe – na verdade, muito pelo contrário: as ruas estavam abarrotadas de pessoas em plena tarde, todas fantasiadas e semi-embriagadas. O som de um trio elétrico vinha de algum lugar, mas era impossível para Wando e Sam descobrirem de onde em meio àquela multidão toda. Antes mesmo que pudessem pedir informação a alguém lúcido o suficiente para dá-la, foram tragados para o meio de algum bloco com nome brega. As lendas eram verdadeiras: aquela era a terra do carnaval sem fim.

Wandinho e Sam tentaram correr, tentaram se esconder, mas estavam cercados de hits do verão por toda parte. “Ai se eu te pego” era repetido numa frequência torturante, levando nossos protagonistas à beira da insanidade. Já estavam próximos do suicídio quando uma voz amiga, que soava cristalina mesmo em meio àquela algazarra digna de todas as rádios juntas, lhes soou ao ouvido. Conseguiram apenas ver a silhueta de três pessoas antes de serem vendados. Das duas, uma: ou estavam sendo salvos por algum milagre, ou finalmente haviam encontrado o famigerado ladrão de rins.

 

Era melhor do que um milagre. O protetorado de Lady Greice era um verdadeiro oásis, um bastião de segurança em meio àquela terra de axé eterno. O lugar deveria ser algum galpão ou armazém antigo, a julgar pelo tamanho. Havia mobília e gente para todo lado. Estantes abarrotadas se distribuíam por todo recinto, mesas de mogno redondas – que davam um ar requintado ao ambiente – estavam cercadas de pessoas. Pelas paredes, penduravam-se cortinas em perpétuo dourado – alguém tinha dedo podre para design de interiores. Era possível ouvir uma conversa numa língua estranha vinda de algum lugar. Numa das extremidades do local, era possível observar três rapazes numa discussão acalorada a respeito das diferenças entre o Antigo Mundo das Trevas e o Novo Mundo das Trevas, embora – como sempre – parecessem nunca vencer o estágio dos gostos pessoais e chegarem a um consenso. Numa outra ponta, garotas faziam roda em torno de um sujeito que tocava a mais que batida Faroeste Caboclo no violão. Definitivamente, aquele era um pedaço da Terra abençoado pelos deuses.

Wandinho e Sam estavam ainda um tanto atordoados minutos depois de lhes tirarem as vendas. Tentavam arduamente assimilar toda a informação em torno deles. Se o Sapo Saltitante parecia um paraíso nerd, ali era o éden primevo, a Ilha dos Amores de Camões. Se já era difícil para nossos protagonistas absorver aquilo tudo, suas cabeças quase entraram em parafuso quando puseram seus olhos em Lady Greice. Ela possuía um porte altivo, senhora de si e daquele refúgio encantado. Tinha cabelos encaracolados que lhe caíam sobre os ombros, pele amorenada, corpo esguio, uma certeza nos movimentos e uma expressão decidida, de quem era capaz de amar ou odiar fervorosamente. Usava uns óculos arrendados, meio-termo entre Ozzy Osbourne e um diretor de cinema cult, e vestia uma blusa de uma banda indie com jeans desbotado. Era dona de uma beleza singular, que certamente ia muito além de sua aparência. Wandinho e Sam ficaram simplesmente sem palavras por uns bons e incômodos minutos.

Assim que foram acomodados, nossos desnorteados protagonistas contaram toda sua história à sua anfitriã, desde a saída de São Paulo até irem parar em Serpentina. Lady Greice ficou particularmente sentida pela queda de Dadolargo, a quem conhecia havia muitos anos e tinha uma estima muito grande. Disse também que sabia onde morava a família de Gisele, podendo levar Wando e Sam para lá assim que eles tivessem forças para empreender a jornada. E assim, concedeu-lhes abrigo e descanso em sua morada de eterna paz, intocada pela corrupção dos sombrios ritmos carnavalescos que tomavam a cidade.

 

Antes que partissem, escoltados por três bravos guerreiros, Wandinho e Sam foram uma última vez chamados à presença de Lady Greice. Ela, com seu ar de sabedoria milenar, disse-lhes palavras de motivação, confessando que a causa do amor puro e verdadeiro enternecia seu coração – na verdade, ela própria tinha um longo histórico de casos trágicos e dores de cotovelo, e não queria que esse mal se espalhasse pelo mundo, a fim de evitar a reprodução exagerada de músicas melosas. Por fim, deu a nossos audaciosos protagonistas um presente: uma pequena e singela caixinha retangular, medindo não mais que dois palmos em seu lado maior. Disse-lhes que a usassem apenas num momento de extrema necessidade, quando as trevas os cercassem por toda parte. E assim se despediu de Wandinho e Sam, desejando-lhes toda sorte do mundo ao atravessarem as terríveis ruas de Serpentina.

Os enviados de Lady Greice pensaram em vendar Wandinho e Sam novamente, mas perceberam que aquilo era inútil, utilizando as vendas para taparem os ouvidos ao invés disso. Seguiram por caminhos secretos que apenas o seu povo conhecia, passando pelo perigo sem nem mesmo serem notados. Wandinho pensava, então já um bocado mais lúcido, como deveria ser miserável a vida dos nerds de Serpentina, sempre a se esconderem – embora, numa reflexão mais profunda, tivesse lembrado que ele próprio não assumia-se nerd tão abertamente quanto seu pseudo-orgulho dizia. Confuso, abandonou essas ponderações antes que elas levassem-no a algum terrível e abominável olhar crítico sobre essa situação.

O trajeto transcorreu num piscar de olhos. Antes que pudessem se sentir prontos, lá estavam nossos protagonistas diante da muito aguardada casa de Gisele. As borboletas na barriga de Wandinho pareciam estar brincando de montanha-russa, e ele sentia que ia se desmanchar a qualquer instante. Tremendo, teve que ser auxiliado por Sam, seu fiel companheiro, para dar os passos derradeiros. Mal podia acreditar que toda sua jornada estava próxima do esperado fim.