Julie & Julia

Hello, my friends!

Depois de tanto, mas tanto tempo, cá estou eu again (cara de pau) pedindo um 'cadinho do tempo d'ocês para lerem as minhas sugestões sobre o que gosto de fazer. :D É claro que após tamanha enrolação de "volta e não volta" eu deveria ter um bom motivo para achar que algo que eu diga faça vocês acompanharem o Ponto G novamente, não é mesmo? E não é que eu tenho um bom motivo?

Pois bem, esse meu motivo tem nome e um exelente elenco: Julie & Julia. Eis o filme que me fez ter vontade de voltar a escrever minhas sugestões para vocês.

Julie & Julia nos mostra (é claro) a vida de duas mulheres, Julia Child, no início de sua carreira culinária e Juile Powell, uma mulher de 30 anos que está com a vida meio sem destino e resolve fazer todas as 524 receitas do livro escrito por Julia Child em 365 dias, postando suas experiências em um blog (voilà)!

O filme é bem bonito, conta com grandes atores como Meryl Streep e Stanley Tucci e, como não poderia deixar de ser, é uma ótima inspiração para você, leitor preguiçoso, que está sem animo para fazer o que você gosta de fazer (sacou a referência, hã? hã?).

Confiram o trailer e deem uma chance ao filme.

Beijos e bon appétit!

Julie & Julia

Direção: Nora Ephron

Ano: 2009

Amanda

Ela costumava acreditar nas pessoas. Sempre crente e esperançosa sobre o mundo. Sim, existiam as pessoas que faziam coisas más, mas elas deveriam ter seus motivos. Por que não? Ela mal entendia o que se passava em sua cabeça, imagine nas de quem ela sequer conhecia.

Então decidiu não se preocupar com as pessoas ruins, pois poderia se concentrar nas pessoas boas. Tentou ser a mudança que queria para o mundo. Quase inocente, tinha a bondade como sua essência. Decidida e com suas próprias convicções, vivia para não feri-las.

Pobre Amanda, seu erro foi pensar que todos poderiam ser como ela. Pensar por si só, enxergar o mundo coletivamente e decidir por caminhos diferentes em direção a um bem comum. Pois foi não sendo egoísta que ela se prendeu ao seu próprio mundo e nele se permitiu ser enganada.

Em sua inocência, Amanda se iludiu exatamente por quem só queria usá-la. E foi isto que aconteceu. Usada e descartada, ela se perguntou “por quê?” e não obteve muitas respostas que a confortassem além de: “devo ter sido vítima de uma das pessoas más.”, porém seu próprio argumento não a convenceu e algo acabou sendo rompido na pureza de suas convicções.

Agora ela não mais consegue confiar, se entregar ou acreditar totalmente. Pôs em xeque suas crenças e teve dúvidas sobre elas. Se questionou sobre a razão de todo esse alvoroço entre essa espécie tão pequena e mesquinha frente a grandeza do Universo. Não procurou respostas prontas em deuses ou religiões, ao invés disso prosseguiu em seus questionamentos, sem ao menos saber se era a única e porque se torturava tanto enquanto tantos não se importavam.

Finalmente ela encontrou uma resposta, justamente na espécie mesquinha que tanto amava e odiava. E essa resposta a convence, a convence tanto que ela até volta a acreditar. Diria até que está feliz.

A épica jornada de Wando Percival Junior – Parte 2

Olá, my sweet babies!

Depois de tanto tempo (totalmente por minha culpa! Estou com o conto aqui há alguns dias) finalmente publico para vocês a Parte 2 d'A épica jornada de Wando Percival Junior. É tempo de continuarmos trilhando junto ao nosso protagonista predileto os mais tortuosos caminhos rumo a sua amada Gisele.

Os convido a dar boas risadas junto comigo com mais esse conto do Pedro Grizotti.

Ah! E não comece a ler a segunda parte sem ler a primeira, galerës! É só ir em A épica jornada de Wando Percival Junior – Parte 1!

Um grande beijo e até a terceira e última parte dessa jornada!

 

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O relógio marcava três da manhã, um horário bastante sugestivo se você já assistiu O Exorcismo de Emily Rose. Enquanto Sam sonhava com festas universitárias, a única coisa que ecoava na mente de Wandinho era a frase “Sorry Mario, but the princess is in another castle”. Os dois dormiam pesadamente, cansados depois de um dia cheio e de terem que enfrentar uma fila gigantesca para o único banheiro da pousada, que, graças ao nosso amigo Murphy, parecia ter enchido de hóspedes de uma hora para outra. Pelo preço que estavam pagando, parecia um privilégio até mesmo haver água encanada no local.

E então, subitamente, nossos protagonistas foram arrancados de seu sono – no melhor estilo Inception – por fortes batidas na porta. Sam, o primeiro a conseguir levantar, atendeu ao chamado ainda bastante sonolento. Mal havia girado a maçaneta quando Dadolargo adentrou o quarto como um raio. Terminou de acordar Wandinho aos tapas, e sua expressão não escondia que algo terrível estava a acontecer. Quando já estavam todos razoavelmente despertos, Dadolargo disse, num tom de voz sombrio, que os inimigos haviam encontrado-os. Precisavam sair dali o mais rápido possível, e assim se pôs a recolher tudo de útil que via pela frente. Ainda bastante atordoados, Wandinho e Sam começaram a arrumar as malas tão depressa quanto seus raciocínios entorpecidos conseguiam – o que não impediu que saíssem ainda vestidos com seus velhos pijamas dos Looney Tunes.

Haviam descido apenas o primeiro lance de escadas e nossos protagonistas já conseguiam a ouvir os gritos – ou melhor, urros – vindos do lado de fora. Dadolargo alertou-lhes que aqueles eram os temidos Cavaleiros Negros – metaleiros barra-pesada, inimigos de todo nerd, todo amor, toda cor que não fosse preto, todos os fãs de emocore, todas as patricinhas, todo... – na verdade, eles odiavam tudo que não fosse eles mesmos. Eram a encarnação física do bullying, da destruição e do mal. Ouviam qualquer banda de metal – mas tr00 metal, nada dessa modinha de new metal – que tocasse um estilo cujo nome envolvesse as palavras death, black, doom, grind, evil, 666, destruction, hell, dark, ou heavy, em qualquer ordem e combinação que você puder imaginar. E essa nem era a pior parte: o líder da turba, conhecido como Braddock, o Terrível, era o ex-namorado de Gisele – ok, não vamos falar do passado negro de ninguém aqui, ou a coisa vai ficar feia – e havia descoberto sobre Wandinho e seu propósito, estando naquele momento disposto a arrancar a cabeça do engraçadinho que resolveu se engraçar com “a sua garota” – sim, ele era do tipo bastante teimoso e persistente.

Dadolargo contou, apressado, que os metaleiros eram o antigo nemesis dos nerds de Brasília – na verdade, de mais da metade da cidade – e que agora eles tinham um motivo especial para acabar com Wandinho, o que os motivava ainda mais. Quando nossos aventureiros chegaram ao, notaram que a porta de saída estava prestes a ceder, sendo atingida violentamente por coturnos, correntes e spikes. Terríveis berros ofensivos em tons guturais podiam ser ouvidos por todo salão – piores até do que os gritos da mãe de Wandinho. No canto do recinto, o dono da pousada se encolhia em puro terror, com uma cruz nas mãos trêmulas caso a situação piorasse. Parecia ser o fim da linha para aquela aventura toda.

Num estrondo, a porta de entrada se rompeu. As criaturas que adentraram o Sapo Saltitante naquele momento pareciam ter acabado de sair de algum filme trash dos anos oitenta – ou de um clipe de alguma banda de black metal, o que dá no mesmo. Braddock, um sujeito que demoraria mais de meia hora para passar pela porta giratória de um banco, tomou a frente e encarou Wandinho, uma expressão demoníaca estampada no rosto. Um vento frio correu pelo salão, trazendo a frialdade da própria morte. Se por perto houvesse corvos, eles estariam grasnando. Wando estava paralisado, sentia como se sua alma estivesse sendo esmagada. Sam, naquele momento, estava apenas remotamente consciente. Dadolargo, entretanto, mantinha-se inabalável – certamente ele possuía um bônus de Vontade muito mais alto que o de seus protegidos. Ágil e sempre preparado, sacou de sua mochila um vinil do Dimmu Borgir, uma relíquia de tempos perdidos, e atirou-a em direção à turba dos metaleiros, que imediatamente começaram a se digladiar pela posse daquele tesouro. Antes mesmo de ser questionado sobre onde havia conseguido aquilo, Dadolargo aproveitou a distração para escapar o mais rápido que pôde com Wandinho e Sam, correndo para a porta dos fundos – engraçado como sempre há uma quando mais se precisa.

E foi assim que, por um triz, nossos protagonistas conseguiram fugir pela escura madrugada brasiliense, feito verdadeiros ladrões dos contos árabes, e pensando que, na pior das hipóteses, aquilo tudo ao menos daria uma boa história para ser contada na internet.

 

Espremidos na boléia do caminhão e derretendo em suor, Wandinho e Sam melancolicamente tentavam se consolar, imaginando que aquela situação ao menos era melhor do que estarem se apertando nas gavetas de algum necrotério em Brasília. No meio da noite, aquilo era o melhor que poderiam conseguir, parte do genial plano de escapatória de Dadolargo, sobrinho do visualmente – e olfativamente – desagradável motorista, que naquele momento cruzava as fronteiras da Bahia. No final das contas, a carona tinha servido também para economizarem a grana das passagens, embora novamente tivessem que viajar ao som de Zezé di Camargo e Luciano.

Mesmo não sendo dos mais agradáveis, o percurso até os confins baianos não foi de todo mal. Wandinho e Sam conheceram a história de Dadolargo, um rapaz de tão bom coração que só não havia se tornado um super-heroi por falta de um corpo mais sarado para usar colan, cujo sonho – depois de jogar muito RPG, é claro – era se tornar um ator de verdade – eu sei que muitos de vocês, caros leitores, já desejaram a mesma coisa, mas caso não tenham algo minimamente próximo da sorte e habilidade do personagem em questão, melhor desistirem enquanto ainda lhes resta alguma dignidade. Fora isso, ele ainda tocava guitarra numa banda de power metal e jogava basquete nas horas vagas. Com um currículo tão impressionante, Wando e Sam imaginaram que as mulheres deveriam fazer fila na porta da casa de Dadolargo – o que não estava muito distante da realidade.

Todo aquele papo fez o tempo parecer passar mais rápido e animou os espíritos, embora incomodasse um pouco a Wandinho a falta de coisas legais que pudesse contar sobre sua vida – você prestou atenção ao início do texto, não é? A Sam nada mais perturbava, concentrado como estava em seus pensamentos e expectativas de sua recém-iniciada fase pervertida – um tanto tardiamente, é claro, mas estamos falando de um jovem nerd aqui – absolutamente comum a todos os adolescentes – e que, no caminho certo, o teria levado à excelente carreira de mulherengo boêmio filhinho de papai.

Depois de duas paradas para descarregar mercadorias – nas quais Wandinho e Sam trabalharam tão duro que desejaram ter pagado as passagens de ônibus – e uma para almoço, nossos cansados protagonistas finalmente conseguiram pegar no sono, embora numa posição tão bizarra e comprometedora – por causa da falta de espaço, obviamente – que seriam zuados pelo resto de suas vidas se mais alguém tivesse visto aquela cena. E foi assim que, usando a mesma estratégia de quando se tem fome bem no meio da noite, Wando, Samuel e Dadolargo dormiram pesadamente, esperando que dessa forma o desconforto daquela viagem passasse mais rápido.

A discussão estava acalorada, mas tudo que Wandinho se limitou a fazer foi pôr mais um pedaço de frango na boca e aguardar calado. Ainda não havia decidido se o tio de Dadolargo era esquecido, idiota, maldoso ou simplesmente um bom fingidor. A carona havia sido uma mão na roda, mesmo com todo o aperto, mas acordar numa fazenda em algum lugar perdido em meio ao oeste baiano não foi muito agradável. Naquela casa moravam também a tia, três primos, o avô e mais alguns parentes de Dadolargo, que, segundo o pensamento distorcido de seu tio, estava muito a fim de visitar sua família do interior. Pelo menos a comida era boa e teriam onde passar a noite, pensou Wandinho – e a expressão de Sam, as mãos cobertas de óleo reluzente segurando uma perna de galinha, parecia dizer a mesma coisa.

Não havia muito mais que pudesse ser feito. Se fossem esperar por uma carona de volta, Wandinho e os outros teriam de passar todo o final de semana naquele fim de mundo – e ainda era quarta-feira. Decidiram descansar e juntar forças para o outro dia, no qual tomariam o rumo de Serpentina, embora ainda não soubessem como – só sabiam que tinham que terminar aquilo tudo rápido, ou perderiam a estréia da nova temporada de The Walking Dead no domingo, o que era absolutamente impensável.

Enquanto Sam zapeava pelos tediosos canais da parabólica – sempre presente nos lares interioranos – Wandinho vagava longe, pensando em sua musa nerd. Ensaiava mentalmente o que diria a ela quando se encontrassem, mas sua cena hipotética sempre terminava com ele dizendo alguma bobagem, como notar os quilos extras de sua amada ou puxar um papo sobre toalhas de banho e suas utilidades no espaço sideral. Decidiu que se aconselharia com Dadolargo e tentaria aprender algo sobre falar com mulheres cara a cara – porque atrás de uma tela e com o Google ao lado, todos podem ser o Don Juanencarnado. Wandinho acabaria por demorar a pegar no sono naquela noite, se torturando com o fato de as coisas não serem tão simples quanto mostram na Sessão da Tarde.

 

Ardendo sob o sol do meio-dia baiano, Wandinho e Sam estavam prestes a sair no tapa, apartados pela última gota de paciência de Dadolargo. Tudo parecia bem até aquele casal de sotaque engraçado ter abandonado nossos três bravos viajantes naquele posto de gasolina no meio do nada, partindo com tudo que eles tinham de valor. Haviam aceitado a carona por insistência de Sam, que estava hipnotizado por Andressa, uma mulher de movimentos lânguidos e sensuais. Coincidentemente, o namorado de Andressa também se chamava Wando, um sujeito suspeito com um bigode pitoresco, do qual deviam ter desconfiado desde o princípio. Entretanto, já era tarde, e tudo que Wando, Sam e Dadolargo podiam fazer era chorar pelo leite derramado, o que sempre parece ajudar em muito a resolver qualquer que seja o problema em questão.

Depois de esperarem por horas e quase não verem veículo algum passando por aquela rodovia perdida, nossos protagonistas decidiram por seguir viagem a pé, uma vez que não tinha muito escolha – afinal, mesmo se conseguissem alguma carona, as chances de serem levados por um molestador ou psicopata parecia enorme naquele pedaço do mundo esquecido pelos deuses. Juntaram o pouco dinheiro que ainda lhes restava, compraram provisões e caíram na estrada, mesmo com poucas esperanças de chegarem ao destino pretendido – uma vez que estavam inclinados a matar uns aos outros na primeira oportunidade.

Nos infindáveis dias que se seguiram – foram apenas dois, mas isso tiraria todo o tom épico da história – Wando e os demais caminharam até suas peles ficarem completamente bronzeadas, comeram o pão que o diabo amassou – isso é, se o diabo for uma cozinheira baiana de beira-de-estrada que cobra bem baratinho – dormiram em postos de gasolina imundos e por muitas vezes tiveram de usar pontos de Força de Vontade para não se enforcarem – é, numa situação assim os humores não ficam nada bem. Toda noite, ao deitar-se ao relento para dormir, Wandinho olhava para as estrelas e buscava o rosto de sua amada, mas lembrava que esse tipo de alucinação é apenas reservado aos jogos de videogame e filmes. Já Sam contorcia-se de desespero e ansiedade, pois nunca havia ficado tanto tempo sem internet em toda sua vida.

Quando a manhã de sábado ainda começava, nossos três resistentes aventureiros finalmente avistaram algum sinal de civilização: uma cidadezinha com casas de aparência antiga. Animados, pensando que estavam diante da sonhada Serpentina, buscaram forças em seus interiores – feito Seiya de Pegasus – e correram a toda velocidade, tolamente imaginando que toda aquela jornada estava perto do fim.

 

Wando ainda estava um tanto desnorteado devido à rapidez com que tudo tinha acontecido. Haviam entrado na cidadezinha e vagado a esmo por uma infindável quantidade de minutos, nenhum sinal de uma alma viva. Nenhum carro pelas ruas, nenhum transeunte a caminhar apressado pelas calçadas, nenhuma barraquinha vendendo lanches cheios de salmonela e – o pior de tudo – nenhuma lan house aberta. Sam estava tão convencido de que estavam numa cidade fantasma que tentava empurrar as casas para ver se elas desabariam como o cenário bidimensional que deveriam ser – e podia jurar que iriam encontrar um saloon de porta balançante a qualquer instante. Dadolargo seguia atento, desconfiado de toda aquela quietude – vocês sabem o que diz o clichê a respeito de calmarias assim, não é?

E a partir de então, tudo ocorreu muito rápido. Uma senhora com aquela aparência acolhedora de quem faz ótimos bolos viu Wandinho e seus amigos se arrastando pelas ruas desertas, abatidos pelo sol e pela fome, e imediatamente os acolheu em sua casa com cheiro de domingo a tarde. A doce velhinha, que usava um xale de crochê rosado sobre os ombros curvados pelos anos, logo se pôs a cuidar de nossos três acabados protagonistas com um carinho maternal. Antes que eles pudessem terminar de lamber os dedos, já eram servidos com mais cookies, pedaços de tortas, pudins, pãezinhos de queijo, biscoitos de polvilho e outras iguarias mais. Parecia tudo muito surreal, uma fantasia nascida depois de Kafka ter passado a noite toda se empanturrando de doces. Entretanto, uma barriga cheia é capaz de espantar qualquer preocupação, e assim Wandinho, Sam e Dadolargo rapidamente ignoraram o fato de a cidade estar mais vazia que o Google+ no seu ano de lançamento.

Sem que notasse, as horas escorreram pelos dedos de Wandinho feito chocolate derretido – quase literalmente falando. Em meio à comilança, nossos gulosos protagonistas mal notaram a casa se enchendo de outras velhinhas, todas muito simpáticas e agradáveis, que os enchiam de mimos e doces. Cada nova senhora que chegava trazia consigo uma nova iguaria: de beijinho a empada, de refrigerante a limonada, Wando e seus amigos sentiam como se fossem explodir a qualquer momento. Nos intervalos entre as refeições, eles ouviam histórias antigas com a cara enfiada em porta-retratos cheirando a mofo, contadas pelas velhinhas com entusiasmo e nostalgia. Conheceram inúmeros netinhos, todos “muito lindos e inteligentes” – é, eu sei que sua avó também falava isso de você quando pequeno, caro leitor, e também sei que ela se desencantou quando você cresceu e virou um adolescente chato. Os álbuns de fotografias pareciam não acabar nunca, e as senhoras faziam fila para terem a oportunidade de também contarem suas histórias.

E isso se repetiu tarde e noite adentro, vencendo a resistência de Wandinho, Samuel e Dadolargo. E foi então, após acordarem em camas bem forradas depois de terem pegado no sono no sofá, numa bela manhã de domingo – dia sagrado das velhinhas – que notaram, para a profunda tristeza de todos, que a maldição da terra das vovós sem netos estava completa.

 

Por algum erro no cartório – que pareciam ocorrer numa frequência alarmante antigamente – a senhora que havia acolhido Wando e seus amigos chama-se Circe – um nome bastante adequado, embora ela não fizesse ideia de onde seu pai havia tirado aquilo. Dona Circe havia sido mãe quatro vezes, e cada um de seus filhos havia lhe dado dois netos, o que a alegrava muito, uma vez que sua casa sempre vivia cheia de crianças. Entretanto, tudo mudou com a chegada daquela maldita internet. Os jovens da cidade, através da péssima – e única – conexão disponível na região, notaram o quanto o mundo lá fora era vasto e cheio de oportunidades, e então, pouco a pouco, deixaram todos aquela cidadezinha perdida em meio ao oeste baiano, rumando para as grandes metrópoles, como Brasília, Goiânia e Salvador. Aos poucos, até mesmo os adultos acompanharam o êxodo dos jovens, traindo a sagrada convivência familiar em prol de dinheiro sujo e abundante. O resultado disso tudo foi que restaram apenas os velhinhos na cidade, agora quase deserta, carentes de bochechas para serem apertadas, ouvidos curiosos e estômagos vazios.

Não havia forma de Wando e seus amigos escaparem. Com seus quitutes mágicos, Dona Circe os havia transformado em leitões, incapazes até mesmo de correrem até a porta da sala de estar. Os dias se passavam – lá se foi a estréia da temporada nova de The Walking Dead – e eles não conseguiam – talvez nem mesmo quisessem – descobrir uma forma de fugir e seguir viagem. Tudo parecia perdido – mas, espere ai, você não achou que a história acabava por aqui, né? Olha quantas páginas ainda faltam! Fora isso, é nessas horas que o heroi sempre tem alguma ideia genial.

E dessa vez não seria diferente. Dadolargo havia concebido seu plano enquanto ouvia Dona Circe contar sobre como ele se parecia com o neto mais velho dela, que adorava os bolos de chocolate da vovó – já havia dois no forno, aliás. Para pôr sua ideia em prática, entretanto, ele teve de se concentrar e recorrer a todos os seus dotes teatrais. Na calada da noite, compartilhou seu estratagema com Wandinho e Sam, que a princípio relutaram, mas por fim aceitaram – com lágrimas nos olhos – que aquele era o único jeito de escaparem. Os três mal conseguiram pregar os olhos – provavelmente culpa de alguma indigestão – pelo resto da madrugada, sentindo-se como se estivessem se preparando para um enterro.

A partir do nascer do sol, tudo correu como planejado. Furtivamente, Wando e Sam conseguiram esconder todo o café-da-manhã em suas mochilas – já prontas para a fuga – enquanto Dadolargo distraia Dona Circe. E então, no ápice da tensão – isso é, no fim da refeição – o momento fatídico chegou. Dadolargo olhou bem nos olhos de Circe, apontou-lhe o prato vazio e disse a frase fatal. Aproveitando-se do total deslumbramento – num nível quase hipnótico – da velhinha feiticeira, Wandinho e Sam deram no pé, um nó na garganta por estarem deixando seu companheiro para trás.

Horas e horas depois, as últimas palavras de Dadolargo ainda ecoavam na mente de nossos bravos e finalmente livres viajantes: “Vovó, ‘tava tão bom, posso repetir?”. Wandinho jurou para si mesmo que aquele sacrifício jamais seria esquecido. Estava mais decidido do que nunca a encontrar Gisele e selar seu amor eterno.

 

Assim que puseram os pés em Serpentina, Wandinho e Sam notaram que alguma coisa estava muito errada naquele lugar. Não como na cidade de Circe – na verdade, muito pelo contrário: as ruas estavam abarrotadas de pessoas em plena tarde, todas fantasiadas e semi-embriagadas. O som de um trio elétrico vinha de algum lugar, mas era impossível para Wando e Sam descobrirem de onde em meio àquela multidão toda. Antes mesmo que pudessem pedir informação a alguém lúcido o suficiente para dá-la, foram tragados para o meio de algum bloco com nome brega. As lendas eram verdadeiras: aquela era a terra do carnaval sem fim.

Wandinho e Sam tentaram correr, tentaram se esconder, mas estavam cercados de hits do verão por toda parte. “Ai se eu te pego” era repetido numa frequência torturante, levando nossos protagonistas à beira da insanidade. Já estavam próximos do suicídio quando uma voz amiga, que soava cristalina mesmo em meio àquela algazarra digna de todas as rádios juntas, lhes soou ao ouvido. Conseguiram apenas ver a silhueta de três pessoas antes de serem vendados. Das duas, uma: ou estavam sendo salvos por algum milagre, ou finalmente haviam encontrado o famigerado ladrão de rins.

 

Era melhor do que um milagre. O protetorado de Lady Greice era um verdadeiro oásis, um bastião de segurança em meio àquela terra de axé eterno. O lugar deveria ser algum galpão ou armazém antigo, a julgar pelo tamanho. Havia mobília e gente para todo lado. Estantes abarrotadas se distribuíam por todo recinto, mesas de mogno redondas – que davam um ar requintado ao ambiente – estavam cercadas de pessoas. Pelas paredes, penduravam-se cortinas em perpétuo dourado – alguém tinha dedo podre para design de interiores. Era possível ouvir uma conversa numa língua estranha vinda de algum lugar. Numa das extremidades do local, era possível observar três rapazes numa discussão acalorada a respeito das diferenças entre o Antigo Mundo das Trevas e o Novo Mundo das Trevas, embora – como sempre – parecessem nunca vencer o estágio dos gostos pessoais e chegarem a um consenso. Numa outra ponta, garotas faziam roda em torno de um sujeito que tocava a mais que batida Faroeste Caboclo no violão. Definitivamente, aquele era um pedaço da Terra abençoado pelos deuses.

Wandinho e Sam estavam ainda um tanto atordoados minutos depois de lhes tirarem as vendas. Tentavam arduamente assimilar toda a informação em torno deles. Se o Sapo Saltitante parecia um paraíso nerd, ali era o éden primevo, a Ilha dos Amores de Camões. Se já era difícil para nossos protagonistas absorver aquilo tudo, suas cabeças quase entraram em parafuso quando puseram seus olhos em Lady Greice. Ela possuía um porte altivo, senhora de si e daquele refúgio encantado. Tinha cabelos encaracolados que lhe caíam sobre os ombros, pele amorenada, corpo esguio, uma certeza nos movimentos e uma expressão decidida, de quem era capaz de amar ou odiar fervorosamente. Usava uns óculos arrendados, meio-termo entre Ozzy Osbourne e um diretor de cinema cult, e vestia uma blusa de uma banda indie com jeans desbotado. Era dona de uma beleza singular, que certamente ia muito além de sua aparência. Wandinho e Sam ficaram simplesmente sem palavras por uns bons e incômodos minutos.

Assim que foram acomodados, nossos desnorteados protagonistas contaram toda sua história à sua anfitriã, desde a saída de São Paulo até irem parar em Serpentina. Lady Greice ficou particularmente sentida pela queda de Dadolargo, a quem conhecia havia muitos anos e tinha uma estima muito grande. Disse também que sabia onde morava a família de Gisele, podendo levar Wando e Sam para lá assim que eles tivessem forças para empreender a jornada. E assim, concedeu-lhes abrigo e descanso em sua morada de eterna paz, intocada pela corrupção dos sombrios ritmos carnavalescos que tomavam a cidade.

 

Antes que partissem, escoltados por três bravos guerreiros, Wandinho e Sam foram uma última vez chamados à presença de Lady Greice. Ela, com seu ar de sabedoria milenar, disse-lhes palavras de motivação, confessando que a causa do amor puro e verdadeiro enternecia seu coração – na verdade, ela própria tinha um longo histórico de casos trágicos e dores de cotovelo, e não queria que esse mal se espalhasse pelo mundo, a fim de evitar a reprodução exagerada de músicas melosas. Por fim, deu a nossos audaciosos protagonistas um presente: uma pequena e singela caixinha retangular, medindo não mais que dois palmos em seu lado maior. Disse-lhes que a usassem apenas num momento de extrema necessidade, quando as trevas os cercassem por toda parte. E assim se despediu de Wandinho e Sam, desejando-lhes toda sorte do mundo ao atravessarem as terríveis ruas de Serpentina.

Os enviados de Lady Greice pensaram em vendar Wandinho e Sam novamente, mas perceberam que aquilo era inútil, utilizando as vendas para taparem os ouvidos ao invés disso. Seguiram por caminhos secretos que apenas o seu povo conhecia, passando pelo perigo sem nem mesmo serem notados. Wandinho pensava, então já um bocado mais lúcido, como deveria ser miserável a vida dos nerds de Serpentina, sempre a se esconderem – embora, numa reflexão mais profunda, tivesse lembrado que ele próprio não assumia-se nerd tão abertamente quanto seu pseudo-orgulho dizia. Confuso, abandonou essas ponderações antes que elas levassem-no a algum terrível e abominável olhar crítico sobre essa situação.

O trajeto transcorreu num piscar de olhos. Antes que pudessem se sentir prontos, lá estavam nossos protagonistas diante da muito aguardada casa de Gisele. As borboletas na barriga de Wandinho pareciam estar brincando de montanha-russa, e ele sentia que ia se desmanchar a qualquer instante. Tremendo, teve que ser auxiliado por Sam, seu fiel companheiro, para dar os passos derradeiros. Mal podia acreditar que toda sua jornada estava próxima do esperado fim.

A épica jornada de Wando Percival Junior - Parte 1

Olá, meus docinhos de chocolate com recheio de caramelo!

Foi grande o período sem inspiração ou novidades e provavelmente ele continuará, ao menos no que depende da minha criatividade. Porém, existe uma pessoa, aquela pessoa que é tão, mas tão fã do Ponto G e de sua criadora que usa todo o seu dom e inspiração para reviver esse antro de ócio. Sim, meus amigos, é ele! Nosso queridíssimo Pedroca Grizoti.

Como os meus mais fiéis leitores sabem, meu letroso predileto tem sua própria seção aqui no Ponto G, intitulada "Wandos do meu Brasil", que mais tarde virará um livro de contos! Anotem o que eu digo! :} Como sempre o menino escreve demais (isso não é ruim) e o nosso novo protagonista ocupará mais de um post!

Acompanhem a partir de agora a primeira parte d'A épica jornada de Wando Percival Junior!

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Wando Percival Junior, conhecido por todos apenas como Wandinho, seria apenas mais um entre milhares de jovens paulistas, esquecido em meio à imensidão cinza, se não fosse a história de sua épica jornada, digna de fazer Ash Ketchum e Frodo Baggins derramarem lágrimas de admiração silenciosa. Nascido numa família sem graça de classe média, Wandinho teve uma criação no melhor estilo “leite com pêra”. Seu maior esforço físico de toda adolescência foi ter que andar cinco quarteirões num domingo a noite para comprar um pacote de Doritos, devorado enquanto ele jogava Tibia com os amigos. Seria uma existência fadada à obesidade mórbida atrás de uma mesa de escritório, mas o destino de Wando lhe reservava algo muito mais grandioso.

Tudo começou em mais uma tarde de tédio, frequentes na vida de Wandinho. Sentado só de cueca de frente ao ventilador, perambulando pela internet, ele procurava por algo que preenchesse aquele vazio interior que sentia. Vagueou por sites pornográficos de qualidade duvidosa, fez contas em redes sociais obscuras – o supra-sumo do ócio – assistiu vídeos de gatos no YouTube e acessou todos os blogs supostamente engraçados de sua lista de favoritos. Quando já estava quase indo jogar Paciência, sofreu um daqueles acessos de nostalgia que te fazem ficar compartilhando porcarias no Facebook. Em pouco tempo, baixou e instalou Ragnarok Online, um jogo que já o tinha feito matar incontáveis aulas e varar inúmeras noites. Sacou salgadinhos gordurentos da despensa, a Coca-Cola sem gás da geladeira e se pôs a jogar.

Dias e dias se passaram. Como bom nerd que era, Wandinho já possuía ao menos três personagens super-poderosos, daqueles que pessoas normais jamais conseguiriam ter mesmo se jogassem a vida inteira. E foi assim, em meio à matança de monstros rosados e muito PvP, que Wandinho conheceu Gisele. Nos primeiros momentos, ele estava incrédulo, pois duvidava da existência de garotas nerds de verdade. Depois de comprovar a veracidade do alegado gênero feminino de Gisele, imaginou que ela fosse alguma gordinha espinhenta colecionadora de mangás e motivo de piada na escola, mas o mais surpreendente ainda estava por vir: depois de adicioná-la em todas as redes sociais possíveis, descobriu que ela era linda! Cabelos curtos, estilo despojado, sorriso contagiante, tom de pele de alguém que faz algo além de ficar em casa o dia todo de frente ao computador, magra, rosto sem marcas nojentas da adolescência e – a melhor parte – coxas voluptuosas. Era bom demais para ser verdade – mas, infelizmente, era.

Wando conversava com Gisele todos os dias, deslumbrado. Falavam de HQs, animes, músicas, jogos e pokémon, entre outras coisas. O coração de nosso pobre protagonista batia acelerado toda vez que ele via a janelinha do canto direito anunciar que sua musa geek estava online – no final das contas, ela era a única garota com a qual ele falava, mesmo que fosse apenas pela internet. Obviamente, Wando caiu de amores por Gisele, e assim se pôs a utilizar sua milenar tática de sedução: piadas e trocadilhos de duplo sentido. Ele não sabia lidar bem com esse tipo de situação – na verdade, não tinha a menor ideia do que estava fazendo – mas perseverou. Aprimorou seu charme – isso é, investiu mais alguns pontos em Carisma – e aprendeu – em fóruns virtuais, claro – novas estratégias de conquista. Com a determinação de alguém que zera Doom II na dificuldade nightmare, escalou os terríveis muros da friendzone e investiu diretamente ao seu objetivo. E colossal foi a surpresa de Wandinho ao perceber que havia conseguido um acerto crítico no coração de Gisele, mesmo contra todas as expectativas. Três urros ele deu, e três vezes zerou Guitar Hero III no extreme, mas ainda era difícil acreditar em seu feito. Seu corpo estava tomado pela adrenalina: era como se ele tivesse engolido uma dúzia das estrelas douradas psicodélicas de Super Mario World. Gloriosos foram aqueles dias, a primavera da verdadeira adolescência de Wandinho, mas estavam fadados a encontrar um triste fim.

Quando a euforia passou, Wando começou a compreender seu drama. Tudo bem, ele estava bastante satisfeito em ter suas declarações de amor correspondidas – mesmo que fosse apenas através de uma janelinha de chat no facebook – mas todos sabemos que isso não vale nada no cruel universo masculino, no qual as conquistas com o sexo oposto são todas exibidas como troféus. Uma namorada virtual chegava a ser pior do que estar sozinho, já que era munição fácil para os inimigos em qualquer troca de ofensas gratuitas – “olha quem fala, o gordinho que nem mesmo consegue arrumar uma mulher de verdade” – que são irritantemente constantes durante a adolescência. Wandinho chegou muito perto de se tornar o predecessor tupiniquim de Zangief Kid, bombardeado de todas as partes por seus colegas de escola, mas decidiu tomar a saída mais honrosa para seu problema: ir atrás de Gisele.

Entretanto, não só de intenções se faz um épico. Gisele morava em Brasília, e o mais distante que Wando já tinha ido era para Santo André, a fim de visitar uma tia solteirona que criava sete gatos, e para piorar ainda acompanhado dos pais. Isso sem considerar todas as despesas envolvidas, um tanto pesadas para a receita de quinze reais semanais – que deveriam ser para o lanche, embora sempre fossem usadas com outra coisa – de Wandinho. E, acima de tudo, havia o medo de nosso não-tão-intrépido protagonista de acordar numa banheira de gelo sem os rins, o que ele acreditava ser perfeitamente possível – e até mesmo provável – depois de alguns anos acessando a internet. Ainda assim, Wandinho perseverou bravamente, lutando contra seus temores e dificuldades tão ferozmente que poderia derrotar Freeza em apenas dois episódios.

Com o coração partido, Wandinho vendeu toda sua coleção de bonecos dos Cavaleiros do Zodíaco – daqueles completamente articulados que você tinha aos montes quando criança, mas destruiu todos – para juntar uma graninha. Não sendo suficiente, ainda trabalhou meio expediente durante dois meses numa lan house do seu bairro, ensinando a um incontável número de quarentonas como mandar recados coloridos no Orkut e aturando infindáveis bandos de garotos de dozes anos gritando uns com os outros enquanto se matavam em algum jogo de tiro qualquer. Foi durante esse tempo que Wandinho conheceu, a duras penas, a realidade de quem está na base da pirâmide do capitalismo, o que o incentivou a, algum tempo depois, desistir de seu sonho de prestar vestibular para História e fazer algo que verdadeiramente lhe rendesse algum dinheiro.

Como ainda estava um tanto inseguro, Wandinho convenceu Samuel, seu melhor amigo e parceiro de nerdagem, a acompanhá-lo naquela viagem incerta rumo a um destino desconhecido – embora fosse tudo bem menos poético. Sam era de uma família tão rica que nunca ia ao shopping apenas a passeio – típico programa das classes menos abastadas, cujo ápice é sempre esperar quase uma hora para fazer um lanche numa praça de alimentação lotada e barulhenta. Além da companhia, Sam poderia prover fundos de viagem inestimáveis, especialmente o Nintendo 3DS dele, perfeito para os momentos de tédio balançante dentro do ônibus semi-leito cheio de velhos chatos e crianças irritantes – afinal, quem faz uma viagem interestadual desse tipo bem no meio de abril? – que tomariam. No fundo, Wandinho esperava que, se topassem com o tal ladrão de rins, que ele ao menos fizesse o favor de roubar um dele e outro de Sam, não deixando assim ninguém no prejuízo.

Antes que conseguisse partir, entretanto, Wandinho teve de travar batalhas ferozes contra sua mãe, que era radicalmente contrária àquela viagem – nos dois sentidos – toda. Feito um verdadeiro político em ano eleitoral, nosso falacioso protagonista encheu a boca de promessas, que iam desde notas melhores na escola até a lavar a louça – isso é, colocar tudo na lavadora automática – por um ano inteiro. Entre trabalhos forçados e discussões exaltadas, Wandinho foi aos poucos amolecendo sua progenitora – que, como ele notou com certa estranheza, utilizava bastante palavrões que eram ofensivos a ela própria. No final das contas, ele acabou propondo acordos dos quais se arrependeria amargamente mais tarde – na verdade, pelo resto da vida, vocês logo perceberão.

De mochilas prontas e passagens compradas, Wando e Sam partiram de São Paulo numa manhã de garoa – e faz outro tempo lá? – com destino à desértica Brasília. Conforme embarcavam, um filme passava na cabeça de Wandinho – que se repetiria mais três vezes durante o percurso, já que eles pegaram os assentos logo abaixo da televisão e o motorista gostava muito de 2 Filhos de Francisco, fazendo questão de compartilhar – e recompartilhar – com os passageiros toda a magnitude daquela obra-prima do cinema brasileiro. Isso sem falar na senhora que se sentou logo atrás dos dois jovens aventureiros, que a cada curva resmungava como estavam indo rápido demais e acabariam batendo feio ou sofrendo outro acidente trágico do tipo, que invariavelmente terminaria com a morte de todos ali. E foi assim que, finalmente, começou a épica jornada de Wando Percival Júnior.

 

Tirando alguns pequenos contratempos, trajeto foi tranquilo para nossos bravos viajantes. Wandinho conheceu os banheiros de todas as rodoviárias e paradas entre São Paulo e Brasília, graças ao seu enjôo de viagem, e neles aprendeu o que há de mais refinado em literatura e filosofia popular. Sam colecionou bugigangas de todos os tipos, mais parecendo um turista estrangeiro, o que acabaria por fazer com que ele retornasse para casa com o triplo de bagagem. Isso sem falar nas leitoras de mão e estrangeiros perdidos prestes a serem assaltados que conheceram, mas isso é tema para outra história.

Por fim, chegaram a Brasília numa noite sem luar, um mau agouro que com certeza passou despercebido. Estavam cansados e precisavam de abrigo naquela terra estranha, e então logo tomaram dois baús – já estavam incorporando o dialeto regional – rumo ao destino que lhes fora recomendado: a Pousada do Sapo Saltitante. O lugar era um prédio velho próximo a Ceilândia, que já havia feito as vezes de bar, prostíbulo, esconderijo, casa funerária duas vezes e até pet shop – curiosamente, o negócio mais rentável que passou por ali – mas que havia sido reformado – entenda por reforma esconder as rachaduras e passar uma camada de tinta nova – e transformado numa espécie de hotel barato. No entanto, quase tudo girava um torno do lounge – um nome pomposo para uma sala de estar acrescida de um balcão de atendimento – do local, ponto de encontro de RPGistas, jogadores de cardgames e outros desocupados do tipo. Resumindo tudo, um paraíso nerd, ideal para o merecido descanso de Wandinho e seu bravo escudeiro – isso é, se eles conseguissem pregar o olho com tanta ansiedade e excitação acumuladas.

Logo cedo pela manhã, após um cochilo rápido, Wandinho e Sam partiram rumo à casa de Gisele, cujo endereço havia sido obtido através da desculpa do envio de um presente ou alguma balela do tipo. Mal podiam se conter dentro deles mesmos, tamanha expectativa. Tiveram até que pegar dois baús, já que precisaram parar no meio do caminho para Wandinho vomitar em algum banheiro público novamente, nervoso como estava. Para completar, ainda conseguiram se perder – mesmo em Brasília – mas finalmente chegaram ao seu destino quase na hora do almoço.

Gisele morava numa república, junto com outras quatro estudantes universitárias – contenha seus pensamentos pervertidos, caro leitor masculino. O lugar era bonito, bem conservado, muito disso devido à ausência da influência perniciosa de algum homem deixando meias sujas espalhadas pela casa, pilhas de louça para serem lavadas sozinhas e coisas do tipo. Tremendo, Wandinho tocou a campainha, segurando suas tripas como podia. Foram atendidos por uma moça de esplendor angelical: cabelos anelados da cor de ouro lhe caíam até os ombros, olhar castanho emoldurado por lentes que lhe davam um aspecto intelectual, pele cor de oliva que parecia reluzir à luz do sol, lânguidos movimentos que lhe davam uma atmosfera teatral. Sam foi imediatamente arrebatado por aquela beleza de ar nerd, não conseguindo dizer palavra que fosse diante do que achava ser a prova irrefutável da existência de forças divinas regendo nosso pobre mundo mortal. Couberam a Wandinho as apresentações e explicações, dadas numa voz vacilante. Foram convidados a entrar, e naquele momento Knockin’ on Heaven’s Door já tocava na mente de Sam, o coração próximo de uma parada súbita – o que só teria deixado essa narrativa ainda mais absurda e sem sentido.

Já acomodados na mesa da cozinha, foram servidos com café – aparentemente a única bebida consumida naquela casa – e biscoitos recheados, bem à moda universitária. A garota que havia atendido a porta, cujo nome era Valdilene, logo anunciou que tinha más notícias – o que fez coisas terríveis passarem pela mente de Wandinho, inclusive a possibilidade de sua amada ter um namorado e o estar enganando esse tempo todo, o que seria o fim mais aceitável para essa história. Entretanto, Val disse que Gisele estava na sua terra natal, numa viagem de emergência devido ao falecimento de algum familiar, mas que voltaria de lá em breve. Explicou-lhe que Gigi – apenas para os íntimos – era de Serpentina, uma cidade no oeste da Bahia – o que fez Wandinho e Sam imaginarem que lá realmente deveria ser carnaval o ano inteiro, como diziam as lendas – e que voltava para lá constantemente, já que não era assim tão longe. Val conversou com os visitantes por mais um bom tempo, ouvindo toda aquela história maluca e rindo com a má sorte de Wandinho ao tentar fazer uma surpresa para sua amante virtual – que era surpresa também para Sam, que só então descobriu que não havia nada de combinado entre seu amigo e a garota dele. Entretanto, Sam não teve sequer chance de se irritar, já que toda sua concentração estava voltada para o decote de Valdilene, e muitas vezes ele agradeceu pela ideia de comprar óculos escuros numa parada logo antes de chegarem a Brasília. Nossos dois protagonistas, que naquele momento viviam sentimentos absolutamente opostos, ainda conheceram as outras moradoras da república – todas espantadas com a loucura de Wandinho – tomaram capuccino, assistiram um filme, trocaram recomendações de animes, discutiram sobre bandas indie e – o mais importante – adicionaram suas novas conhecidas no facebook. Para Sam, aquela tarde foi como ter seu sonho a la American Pie realizado, pobre rapaz ingênuo que era. Algum tempo depois, isso tudo resultaria em outra história curiosa e absurda, dessa vez envolvendo Sam e as universitárias simpáticas – talvez você, caro leitor, possa imaginar um adjetivo melhor – mas isso também fica para uma oportunidade futura. Por favor, aguarde as próximas edições.

 

A noite já ia alta e escura quando Wando e Sam retornaram ao Sapo Saltitante. Enquanto Sam parecia flutuar, Wandinho estava soturno e pensativo. Ao adentrarem a hospedaria – vamos lá, soa mais épico que simplesmente “hotel” – notaram a agitação que tomava conta do local. As mesas do lounge, que nunca eram ocupadas por hóspedes, estavam tomadas por grupos de RPG. Coloridos escudos do mestre se espalhavam por toda parte, o som de dados rolando tomava conta do ambiente, juntamente com o ruído de salgadinhos sendo mastigados. Seria o verdadeiro éden para Wandinho, mas ele estava ainda muito frustrado com o resultado da viagem. Sam, que parecia ter descoberto o caminho para El Dorado e em nada compartilhava o sentimento de seu amigo, logo tratou de se enturmar e preencher a primeira ficha que lhe aparecesse pela frente, prometendo a si mesmo que mataria Lestat de inveja de tanta diversão que teria numa noite só.

Cabisbaixo, Wandinho pediu um refrigerante de laranja e se retirou a uma das mesas do canto, onde a alegria não poderia penetrar sua muralha de auto-piedade. Melancolicamente, relembrava todo sacrifício que tinha feito para conseguir embarcar nessa viagem, e pensava – claramente no fundo do poço – que sua mãe estava certa, que tudo aquilo era uma idiotice sem tamanho. Tão depressivos foram aqueles momentos que Wandinho chegou a colocar My Immortal para tocar no seu celular, e assim atingiu o ápice de todo goticismo adolescente.

Em algum momento, perdido em meio à sua escuridão particular, quando já estava quase escrevendo um poema sobre um corvo, Wandinho notou que um estranho o observava de uma mesa no canto. Estava sozinho e trajava vestes pesadas – provavelmente era algum jogador de Vampiro: A Máscara, pensou nosso triste protagonista. O sujeito, assim que viu que sua atenção era retribuída, chamou Wandinho com um gesto sutil, o qual, surpreso, olhou para todos os lados para confirmar se era a ele que se dirigia o estranho, percebendo assim que ninguém mais estava por aqueles lados tenebrosos do salão. Bastante temeroso, mas em igual medida curioso – e sem nada a perder – Wandinho aproximou-se lentamente, já com o grito de “socorro, ladrão de rins!” preparado na garganta.

Logo que sentou, o sujeito saudou Wandinho e se apresentou. Chamava-se Dadolargo, e assim era conhecido porque os atributos básicos de seus personagens de D&D nunca estavam abaixo de quatorze, isso sem falar que ele conseguia um acerto crítico a cada três rolagens e nunca havia rolado um “1” em qualquer dado que fosse. Outros feitos mais poderiam aqui ser ditos sobre essa folclórica figura brasiliense, como o fato de ter decorado todas as regras da terceira edição de GURPS, mas dispomos de pouco espaço para essa história, então é melhor continuar de uma vez. Dadolargo revelou ter se consultado com os sábios – isso é, tinha stalkeado Gisele em todas as redes sociais que pôde – e assim ter tomado conhecimento do propósito da viagem de Wandinho. Campeão e protetor dos nerds de Brasília, herdeiro de um longo legado perdido desde os imemoráveis anos oitenta, Dadolargo anunciou que era seu dever de honra guiar Wandinho até seu destino e assim iniciar uma nova era no mundo, um tempo governado pelo verdadeiro amor nerd, no qual todo o bullying e preconceito seriam deixados para trás e todos viveriam em paz novamente. Wandinho estava espantado com aquela baboseira toda, tentando desvendar que tipo de golpe aquele homem estava tentando lhe aplicar, mas estava começando a gostar da ideia. Já tinha feito aquela viagem toda, não custava nada seguir um pouquinho mais adiante. Como diria o ditado, “tá no inferno, abraça o capeta” – eu sei que você conhece outras versões, mas elas não podem ser postas aqui.

Quando já estava se levantando para ir chamar Sam, Dadolargo deteve Wandinho, dizendo-o que tomasse cuidado e não revelasse seu propósito a ninguém, já que “o mal” possuía muitos olhos e ouvidos, até mesmo ali no pacato Salto Saltitante. Não entendendo direito o que isso queria dizer, Wandinho chamou Sam para um canto e lhe contou toda a conversa que acabara de ter. Samuel, muito atento, lembrou seu amigo de que possuíam fundos apenas para a passagem de volta, e que, além disso, eles não eram personagens de Eurotrip ou algum filme assim. Por um bom tempo Wandinho teve de usar toda sua habilidade para convencer seu escudeiro a tomar parte naquela loucura – não com esses termos, claro – e que não deviam se preocupar com dinheiro, uma vez que sabia que a família de Sam tinha tanto dinheiro que ele poderia combater o crime por esporte se quisesse, podendo assim facilmente pagar algum resgate se fosse necessário. O argumento final de Wandinho foi a belíssima e jovial irmã de Gisele, que faria Sam até mesmo esquecer Valdilene, sem dúvidas uma proposta ainda mais irrecusável que a de Vito Corleone. Posto isso, acertaram partir logo cedo no dia seguinte, e novamente a esperança brilhou nos olhos de Wandinho – juntamente com algumas cartas de Pokémon TCG, que ele resolveu jogar um pouco para matar o tempo, usando seu velho baralho comprado com o dinheiro do lanche.

E assim transcorreu o resto da noite. Tudo parecia correr bem no Sapo Saltitante, as expectativas altas e a ansiedade a mil. Mal sabiam nossos protagonistas, entretanto, na cilada que estavam se metendo, e ainda naquela madrugada passariam por uma das experiências mais bizarras de suas vidas.

Ôpa! Terminou de ler? Que tal já ir para a segunda parte? Leia A épica jornada de Wando Percival Junior – Parte 2!

As calientes aventuras de Wando Goméz Muñoz

Olá, meus amigos!

É com enorme prazer que faço uma limpeza na casa e tiro todas as teias de aranha para postar mais um conto da série "Wandos do meu Brasil" - Para ver todos os contos da série clique no link de categorias com o mesmo nome. Dessa vez meu letroso favorito, Pedro Grizotti, me surpreendeu positivamente com sua veia humorística. Cada parágrafo teve sua devida dose exagerada de risadas!  Como sempre o exagerado fez um texto gigantesco, mas muito bom de ser lido. Leiam e se divirtam com o caliente Wando!

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Na certidão, ele era Francisco Wando Pereira Dias, mas esse não era nome à altura de seu garbo e grandiloquência. Nascido no pequeno município potiguar de Pau dos Ferros – esse sim, batizado mais de acordo às inclinações de nosso protagonista – veio a Natal ainda em tenra idade, coisa de uns oito ou nove anos. Mas não pense logo que Chico Wando era um menino pobre, filho de retirantes que se mudaram para a capital em busca de uma oportunidade na vida, pois a verdade era exatamente o inverso: a família Dias tinha tantos “doutores” que mais parecia um hospital particular – não o conveniado ao seu plano de saúde, porque esse não funciona nem por reza baiana – ou até certa universidade localizada na Avenida Salgado Filho. Entretanto, isso não evitava que Wando sofresse bullying devido à sua origem interiorana, embora na época não houvesse um termo tão sofisticado para algo que sua parentada pé-rachada chamava simplesmente de frescura. Mas toda a raiva e humilhação apenas fariam aquecer sua fornalha interior, motivando-o ainda mais a – não, ele não se tornou uma criança traumatizada – crescer e se tornar melhor do que todos. Típico exemplo de orgulho burguês, você logo pode notar.

Foi essa motivação deturpada e fútil, somada ao desejo de tomar parte na efervescente vida citadina natalense – uma doce ilusão nutrida por muitos anos de fantasia – que o fizeram assumir sua nova identidade. E assim, após assistir a um episódio de uma terrível novela mexicana dos anos 90, o jovem Chico Dias, então no início de sua adolescência, tornou-se Wando Goméz Muñoz. Deslumbrado com os sedutores bigodes alongados que via na televisão, cultivou o seu próprio, adereço que logo se tornaria sua marca registrada. Ali nasceu sua vingança aos abusos infantis: ele se tornaria o maior galanteador que as terras potiguares já viram – o que, no fundo, não é lá grande coisa – provando-se superior no mais sagrado campo do orgulho masculino. Naquele instante, trovões caíram do céu numa sinfonia titânica, provendo o pano de fundo épico que aquele momento merecia – ou você acha que um moleque estaria enfurnado em casa assistindo novela por vontade própria? Bem, pode até ser nesses estranhos tempos modernos, mas não na época do recém-nascido Wando Goméz.

Entretanto, Wando sabia que apenas um nome novo não seria suficiente. A muito custo fez alguns amigos rock n’ roll – que em Natal moram em catacumbas tão profundas que nunca foram tocadas pelo sol, o que é tão absurdo quanto você está imaginando – e começou a aprender a dedilhar um violão, muito mais interessado em pôr seus dedos imundos em outras coisas. Quando já havia aprendido o suficiente, ignorou todas aquelas lições sobre grunges, punks e metaleiros – divisão que para ele não fazia o menor sentido – e todo aquele papo existencialista e revolucionário em prol de algo muito mais nobre: mulheres. Claro que ele se tornou um proscrito no submundo dos rockeiros natalenses, o anátema do exército negro, mas isso nunca fez diferença em sua vida – seus inimigos eram tão poucos que no final das contas ele nunca mais topou com um novamente. O violão de Wando passou a tocar apenas a linguagem do amor, músicas doces como um cupcake, cantadas com um desconcertante – no bom e no mau sentido ao mesmo tempo – sotaque portunhol. A transformação estava então completa.

Assim, mais terrível que o bug do milênio, Wando lançou-se à caça. Por anos, aprimorou suas habilidades com colegiais, explorando os caóticos mistérios da adolescência. Por incrível que pareça – talvez devido a uma praga de seus inimigos – sua namorada mais duradoura foi uma garota gótica, uma gordinha que lia livros do Poe e derretia maquiagem sob o sol potiguar. Wando até gostava daquele ar exótico, das pegações no cemitério – todos sabem que a graça de ser adolescente é fazer coisas das quais nos envergonharemos mais tarde – mas acabou por enjoar de tantas recitações de O Corvo e conversas sobre gente morta. Com isso, ele acrescentou mais maldições à sua alma, mas isso jamais preocupou nem desviou nosso inabalável herói de seu destino.

Por fim, mais velho e mais experiente – e mais cara de pau também – Wando atirou-se ao desafio final: a boemia da Ribeira. Mais por insistência – chatice – do que habilidade, rapidamente tornou-se uma lenda local, o famoso “bardo mexicano” – logo se vê que ele era um bom fingidor, além de saber que um suposto estrangeiro teria chances astronomicamente maiores do que um rapaz do interior com as mulheres de Natal. E assim caminhava Wando Goméz Muñoz a passos largos em direção ao cumprimento de seu auto-imposto destino.

Wando gostava de definir-se como “um homem com um coração grande o suficiente para amar todas as mulheres do mundo”, normalmente dito com seu jeitão cafajeste. Havia, porém, entre todas, três que eram suas jóias da coroa, suas silmarils. A primeira era Cleiciane, uma ruiva tão linda, mas tão linda, que havia sido a causa de sete acidentes de trânsito, cinco separações e três suicídios. Ela era tão estonteantemente bela que havia ganhado mais de cinco mil seguidores só no seu primeiro dia no Twitter, e olha que nem falava de memes ou sacanagem. A segunda era Milena, ou darkwitch16 – eu sei que você já teve um e-mail assim – uma moça metida a cult que estudava esoterismo e cursava teatro na UFRN, cheia de fantasias, literal e figurativamente, que fariam qualquer homem delirar feito um ultra-romântico. A terceira era Keyla, que tinha os maiores seios de toda Natal. Certa noite, enquanto fazia amor selvagemente com Wando, ela saltou tantas vezes sobre ele, eufórica, esbofeteando-o com tamanha ferocidade que por muito tempo procuraram quem havia tido a ousadia de surrar o bardo mexicano. Numa outra ocasião, Wando quase morreu sufocado por aqueles mesmos seios. Enfim, não são histórias para serem contadas aqui.

Entretanto, Wando Goméz não estava satisfeito. Faltava-lhe o troféu máximo, a consumação de sua vingança infantil: Helena, a mulher mais cobiçada de todo o místico Rio Grande do Norte. Além de seus exuberantes dotes físicos, ela possuía talentos fantásticos, raríssimos de serem vistos entre mulheres hoje em dia: cozinhava muitíssimo bem, conhecendo receitas que iam além de miojo, pipoca e brigadeiro. Além disso, era educada, refinada e possuía dotes musicais, frutos de seu berço – literalmente – de ouro. Porém, uma mulher de tamanho gabarito não estaria por aí dando sopa. Ela era casada com Rumberval, um homem que tinha mais cabeças de gado em suas fazendas do que pêlos no corpo, e olha que ele cultivava uma hirsuta barba em seu rosto como emblema de sua macheza retrô e seu neo-coronelismo. Claro que fora um casamento arranjado entre as famílias, pois só assim haveria drama suficiente nessa história, e não quero ouvir discussões sobre o quanto isso é clichê.

Wando, assim como onze a cada dez homens que botavam seus olhos sobre a graciosidade angelical de Helena, apaixonou-se por ela instantaneamente. Passou a frequentar programas culturais – algo absolutamente inédito em sua vida – apenas para ver aquela beldade saída diretamente do Google Images, que era onde começavam e terminavam as maravilhas – se você entende o que quero dizer – da internet para Wando. E assim, conforme as noites tórridas de stalkeamento se sucediam, ele tinha cada vez mais certeza de que Helena representava o pináculo de sua vingança, o ápice de sua superioridade frente a todos aqueles que o zuavam, que – assim Wando esperava – estariam gordos e ainda morando com suas respectivas mães, se achando o máximo porque acessavam diariamente o 9gag e entendiam todas as piadas com memes ridículos.

O bardo mexicano tentou utilizar todos os seus truques para chamar a atenção de sua amada Helena, mas nunca lograva êxito. Cantou todo o seu repertório, fez uso de todo seu charme pseudo-hispano-latino, exibiu seu bigode incontáveis vezes, mas nada funcionava. Entretanto, isso apenas aumentava sua vontade de ter Helena em seus braços. Ela simplesmente repelia todos os avanços do bardo mexicano, e embora ele não entendesse o porquê, sabia que algo não estava bem explicado. Ninguém seria capaz de resistir tanto assim a ele simplesmente por querer.

Foi então que Wando recorreu à sua arma mais poderosa. Acionou todas as mulheres que conhecia, criando assim a rede de informações – fofoca – mais poderosa que já passou pelo – “como esse mundo é pequeno” – Rio Grande do Norte. Embora cada uma dissesse uma coisa diferente, o que era absolutamente esperado, Wando pôde notar que o calcanhar de Aquiles de Helena era Rumberval, seu marido extremamente ciumento – bem, de certa forma, ele estava certo em ter ciúmes. O terrível tirano, destruidor de todo amor, prendia sua linda esposa numa luxuosa mansão em Ponta Negra, torturando-a com TV a cabo e tempo ocioso. Seguranças de terno negro assomavam-se em suas muralhas, tornando o lugar impenetrável por qualquer um com menos de 50 horas de experiência prática em Metal Gear Solid no nível hard. Mesmo quando saía, Helena nunca estava sozinha. Os olhos de Rumberval a tudo viam, e de seu escuro trono ele ria, vitorioso, enquanto planejava a morte lenta de todos os homens que se engraçavam para cima de sua companheira – ou prisioneira, entenda como quiser.

Por dias e noites Wando pensou em como enganar o futuro corno. Cogitou penetrar as muralhas do inimigo escondido dentro de um cavalo de madeira, mas achou a ideia absurda, pensando em que tipo de idiota cairia num truque assim. Além disso, teria que vencer o temor da própria Helena, que já havia visto homens com a metade do sex appeal de Wando terem que recolher as próprias tripas no chão. Curiosamente, nosso intrépido protagonista sonhou justamente com uma cena assim, embora estivesse do lado mais saudável da peixeira, pois sua megalomania – ou estupidez, novamente essa decisão fica ao seu encargo – era tamanha que transplantava até para os seus sonhos. Muitos dos companheiros de boemia de Wando tentaram alertá-lo sobre essa temeridade suicida, que Rumberval tiraria duas tiras de couro das costas dele e não haveria João Grilo que o salvasse, mas ele estava surdo de amor. Wando estava tão determinado quanto alguém disposto que completa cem por cento de qualquer Final Fantasy, e portanto nada poderia detê-lo.

E foi então, numa noite de festival da Ribeira, na qual Wando se esgueirava para dentro de um recital de poesia a fim de conhecer alguma gatinha intelectual, que ele teve sua grande ideia. Comprou um pequeno livro de sonetos num sebo – não sem antes pechinchar o abusivo preço de dez reais – no outro dia e se pôs a lê-lo. Procuro o melhor entre os melhores, embora pouco entendesse daquele palavreado todo, e se dedicou a decorar minuciosamente cada um dos catorze versos. Afinou seu violão, compôs uma melodia suave que pudesse acompanhar a recitação, aparou o bigode e comprou roupas novas. Estava pronto para seu golpe final.

Numa abafada – obviamente, pois o clima por aqui é sempre assim – noite de sexta-feira, Wando postou-se sob a janela de Helena, pouco além das muralhas ameaçadoras, e começou sua malfadada tentativa de pseudo-seresta:

Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as penas ordenando;
O verso sem medida, alegre e brando,
Despedindo no rústico raminho.

O cruel caçador, que do caminho
Se vem calado e manso desviando,
Com pronta vista a seta endireitando,
Lhe dá no estígio lago eterno ninho.

Destarte o coração, que livre andava
(Posto que já de longe destinado),
Onde menos temia, foi ferido.

Porque o frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.

Wando não sabia bem o porquê de ter escolhido aquele soneto – na verdade, ele nem bem entendia tudo que dizia – mas tinha achado que aquela história de pássaro, morte e amor inesperado tinham tudo a ver com sua situação. Entusiasmado, pois Helena a tudo ouvia deslumbrada, começou a folhear a pequena coletânea do mestre lusitano em busca de mais algo de bonito que pudesse recitar, mas antes disso surgiram os seguranças de Rumberval e ele teve de se botar a correr para não ter seu couro arrancado ali mesmo, embora soubesse que sua hora chegaria mais cedo ou mais tarde.

E não demorou muito. Bem à moda antiga, Rumberval desafiou Wando para um duelo, o que invariavelmente não acabaria bem para nenhuma das partes envolvidas. O local escolhido tinha sido a Rua Chile, o que agradou a Wando, pois ao menos seria um lugar bastante poético para se morrer. Em jogo estava supostamente a honra de Rumberval, o marido quase-traído, mas no fundo ele apenas queria uma forma de acabar com o tal violeiro mexicano sem fazer muito esforço. Wando, logicamente, não poderia fugir, pois tinha reputação pela qual zelar – afinal, que mulher gosta de um sujeito frouxo?

A noite estava a cair quando o palco começou a se armar. Primeiro chegaram os duelistas, que se encararam com a ira de alguém cuja internet caiu em pleno domingo a tarde. Pouco tempo depois, apareceram os padrinhos de Rumberval, o que incluía um padre com a extrema-unção já na ponta da língua. E então começaram a surgir as madrinhas de Wando. A primeira foi Keyla, que o apertou num abraço sufocante, dizendo que não poderia viver sem ele. Pouco depois surgiu Cleiciane, cujos cabelos vermelhos pareciam ter entrado em combustão junto com todos os hormônios de seu corpo quando ela viu aquela cena. As duas começaram a discutir, mas rapidamente descobriram que Wando havia prometido a ambas que tinha saído da boemia e iria se dedicar exclusivamente a ela. Enquanto isso, Milena já havia surgido, todas as pragas egípcias fervilhando em sua mente. E várias outras começaram a surgir, vindas de todos os cantos, até lotarem completamente a rua. Wando sorriu, pois sua rede de informações havia lhe servido muito bem mais uma vez, mesmo que seu corpo estivesse perto de ser partido e seus ouvidos já sangrassem.

Rumberval, que já estava ficando impaciente com aquilo tudo, disparou duas vezes para o alto, mas isso só fez a turba se enlouquecer mais ainda. Todas lhe encararam com um olhar assassino e disseram em quase uníssono: “Você não vai matar Wando coisa nenhuma, quem vai matar ele sou eu!”. E assim, a multidão arrastou o bardo por toda Natal, numa mobilização feminina sem nenhum precedente em toda a história do Rio Grande do Norte.

O que poucos sabiam é que meio à multidão do fatídico dia do duelo estava Helena, mais bem disfarçada entre as mulheres furiosas do que um protagonista de Assassin’s Creed. Muitas histórias versam sobre o que se sucedeu após todo o acontecido, mas o que se sabe é que Wando, de alguma forma miraculosamente absurda, conseguiu escapar vivo, abençoado por toda a sorte dos patifes, e ainda levou consigo sua tão cobiçada Helena, que estava mais do que feliz por poder escapar de sua vida monótona e viver um pouco de aventura. O que é certo é que nenhum dos dois foi mais visto pelas terras potiguares. Contasse à boca pequena que formaram uma dupla chamada Wando e Andressa – com um caliente sotaque latino nos dois s – o violeiro e a dançarina, que viajam o Brasil seduzindo, enganando e roubando viajantes desavisados. Da próxima vez que você encontrar supostos ciganos com sotaque engraçado, é melhor tomar bastante cuidado.